[Vai leno…] Realismo Capitalista — Fisher
Por que escolhi ler este livro?
Porque meu pé nas ciências humanas, a cada dia que passa, quer puxar o outro pé.
Resolvi ler pra entender melhor como a doutrina liberal impacta a cultura e a psicologia da sociedade contemporânea.
Fisher argumenta que o capitalismo se apresenta como o único sistema econômico viável, moldando nossa percepção coletiva e dificultando a imaginação de alternativas.
Seu exame revela como esse sistema permeia todos os aspectos da vida, desde a política até a subjetividade individual, e limita nossa capacidade de resistir e contestar.
Além disso, a leitura do livro permite conectar as ideias de Fisher com as críticas de outros autores como George Orwell, Aldous Huxley, Jean-Paul Sartre, Byung-Chul Han, Pierre Dardot e Christian Laval. Orwell e Huxley ilustram formas de controle e manipulação social, enquanto Han, Dardot e Laval destacam a autoexploração, a vigilância digital e a mercantilização de todas as esferas da vida.
Fisher demonstra que o realismo capitalista é um regime cultural e psicológico que redefine a governança e a subjetividade, tornando a resistência quase impensável.
Decidi ler este livro para entender melhor como uma ideologia pode se perpetuar e para explorar maneiras de imaginar e lutar por alternativas ao status quo.
Além disso, este livro foi citado em diversos momentos durante o meu consumo de debate crítico e político, como:
- canais que acompanho no Youtube (Rita, Ian, Jones e Humberto Matos);
- podcasts e entrevistas (Azideia, Inteligencia);
- canais do Discord da Soberana e encontros do Nucleo de Tecnologia do MTST.
Pra fechar: eu nasci em 11 abril de 1989 (aries e 35 anos no momento). Boa parte do que se discute neste livro, independente da origem dos fenômenos, fez, faz e fará parte da realidade do momento histórico em que eu me encontro neste planetinha.
Sendo assim, ter um olhar crítico (e ácido) sobre o que me cerca, em especial por ter ser sido agraciado com a benção de 3 filhos, faz dessa leitura quase uma obrigação moral.
Capitulo 1 — Pin Points 📌
- Filmes como Mad Max, Matrix, Vingadores e Wall-E
- A música… do grunge do Nirvana a explosão da cultura hip hop;
- Margareth Thatcher e sua frase icônica “não há alternativa";
- Fukuyama e o “fim da história”;
- A era Reagan nos USA;
- O fim da URSS;
- Tudo isso contribuiu para o que vivemos hoje.
A partir da década de 1990 e até os dias atuais, o cenário cultural e político global foi profundamente influenciado por uma série de eventos e ideologias que moldaram a forma como enxergamos o mundo.
A noção de "realismo capitalista" emerge nesse contexto, apontando para a aparente incapacidade de imaginar alternativas ao capitalismo. Líderes como Margaret Thatcher e Francis Fukuyama, com seu proclamado "fim da história", ilustram essa mentalidade. A era Reagan e o colapso da URSS também contribuíram para solidificar essa perspectiva.
Esse estado de coisas é refletido na cultura, desde filmes e música até a filosofia. Uma entrevista com Alain Badiou (trecho abaixo), por exemplo, ilustra como a brutal desigualdade e a mercantilização da existência são justificadas através de comparações com regimes piores, sugerindo que, apesar de suas falhas, o sistema atual ainda é o melhor disponível. Essa narrativa molda a nossa compreensão do mundo, e a cultura popular dos anos 90, incluindo o grunge do Nirvana e a ascensão do hip hop, oferece um espelho crítico das tensões dessa era.
“O brutal estado das coisas profundamente desigual onde toda existência é avaliada em termos apenas de dinheiro é apresentada a nós como ideal para justificar o seu conservadorismo partidário da ordem estabelecida não podem chamar esse estado de ideal ou maravilhoso. Então em vez disso decidiram dizer que todo o resto é horrível Claro eles dizem podemos não viver num paraíso mas temos sorte de não vivermos em uma condição infernal nossa democracia não é perfeita mas é melhor que as ditaduras sangrentas o capitalismo é injusto mas não é criminoso como stalinismo nós deixamos milhões de Africanos morrerem de AIDS mas não fazemos declarações racistas e nacionalistas como Milosevic. Nós matamos iraquianos com nossos bombardeios mas não cortamos suas gargantas com facões como fazem lá em Ruanda etc”
Capitulo 2
Fisher faz muitas referências a Slavoj Žižek. Este argumenta que a sociedade contemporânea se apresenta como pós-ideológica, onde a ideologia dominante é a do cinismo. Segundo Žižek, as pessoas não acreditam mais em uma verdade ideológica e não levam as proposições ideológicas a sério. No entanto, o nível fundamental da ideologia não é uma ilusão que mascara a realidade, mas uma fantasia inconsciente que estrutura nossa percepção do real. Esse nível revela que ainda estamos longe de uma sociedade verdadeiramente pós-ideológica, pois o distanciamento cínico é apenas uma forma de ignorar o poder estrutural da fantasia ideológica. Mesmo quando mantemos um distanciamento irônico, continuamos a agir dentro dos parâmetros estabelecidos por essa fantasia.
A crítica ao Live Aid, Bono Vox e a ideia de que o voluntariado autônomo é a solução ideal reflete essa dinâmica. Essas iniciativas promovem a noção de que os indivíduos devem fazer sua parte para ajudar o próximo, apresentando isso como o melhor que podemos fazer. Isso ecoa o discurso do novo capitalismo e até mesmo os conceitos de ESG (Environmental, Social, and Governance), que buscam integrar responsabilidade social e sustentabilidade no contexto corporativo. No entanto, essa abordagem pode ser vista como uma forma de manter o status quo, ao invés de desafiar as estruturas profundas da ideologia neoliberal que perpetuam as desigualdades sociais e econômicas.
Capitulo 3 — Pin Points 📌
- Realismo capitalista como atmosfera abrangente;
- Naturalização da posição ideológica;
- Ontologia empresarial;
- Crítica ecológica;
- Disfuncionalidade do capitalismo;
- Alto custo humano (no que tange saúde mental)
Fisher aponta nos trechos em destaque abaixo que a ideia de realismo capitalista se relaciona ao pensamento de Fredric Jameson, um teórico marxista e crítico cultural.
Jameson argumentava que o capitalismo avançado cria uma "condição pós-moderna" na qual a cultura é profundamente influenciada e moldada pelas forças econômicas. Ele sugere que o capitalismo é capaz de integrar e naturalizar ideologias, tornando difícil imaginar alternativas ao sistema vigente. Isso se alinha com a ideia de que o realismo capitalista age como uma "atmosfera abrangente" que condiciona a produção cultural e social, bloqueando possibilidades de mudança.
Jameson também enfatiza a relação entre capitalismo e crise, especialmente em termos ecológicos e psicológicos. Ele argumenta que o capitalismo tende a gerar crises cíclicas e estruturais que são inevitáveis dentro do sistema, refletindo a ideia de que o capitalismo está destinado a destruir as condições ecológicas necessárias para a vida humana e que é inerentemente disfuncional, causando uma epidemia de doenças mentais.
“O realismo capitalista como entendo não pode ser confinado a arte ou a maneira quase propagandista pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera abrangente que condiciona não apenas a produção da cultura mas também a regulação do trabalho, da educação agindo como uma espécie de barreira invisível bloqueando pensamento e ação”
“Uma posição ideológica nunca é realmente bem sucedida até ser naturalizada e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor e não como um fato. Não por acaso o neoliberalismo tem procurado acabar com a própria categoria de valor em um sentido ético ao longo dos últimos 30 anos. O realismo capitalista implantou com sucesso uma ontologia empresarial na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade incluindo a saúde e educação devem ser administrados como uma empresa.”
“A importância da crítica verde é que ela sugere que longe de ser o único sistema político econômico viável o capitalismo está na verdade destinada a destruir as condições ecológicas das quais dependem o ser humano. A relação entre capitalismo e o desastre ecológico não é acidental e nem uma mera coincidência. A necessidade constante de um mercado em expansão por parte do Capital seu fetiche pelo crescimento mostra que o capitalismo por sua própria natureza se opõe a qualquer noção de sustentabilidade.”
“A epidemia de doença mental na sociedade capitalista deveria sugerir que ao invés de ser o único sistema que funciona o capitalismo é inerentemente disfuncional e o custo para que ele pareça funcionar é demasiado alto.”
Capitulo 4 — Pin Points 📌
- A inércia da juventude britânica;
- A dependência tecnologia;
- A obra pós foucaltiana de Deleuze;
- A leitura social de Franz Kafka em O processo.
Neste capítulo Fisher aborda a inércia e falta de pensamento crítico da juventude britânica, mostrando como isso contribui para a sensação de estagnação e falta de futuro.
A juventude se vê incapaz de imaginar alternativas ao sistema capitalista, enquanto a tecnologia, em vez de libertar, reforça o controle e a conformidade, aumentando a passividade.
Fisher utiliza as ideias de Gilles Deleuze para explicar como as formas de controle no capitalismo avançado se tornaram mais sutis e internalizadas, contrastando com os métodos disciplinares mais evidentes descritos por Michel Foucault.
Fisher também recorre à leitura social de "O Processo" de Franz Kafka para ilustrar a opressiva burocracia capitalista que gera uma sensação de inevitabilidade e impotência. A burocracia kafkiana, com sua arbitrariedade e inescapabilidade, reflete a experiência cotidiana dos indivíduos sob o realismo capitalista, onde a paralisia cultural e social é onipresente. Fisher articula como essas dinâmicas contribuem para a disfunção do sistema, mantendo os jovens presos em um ciclo de impotência e conformidade.
Capítulo 5
Neste capítulo Fisher nos relembra o ano de 1979 onde o governo e o mercado dos Estados Unidos fizeram um reajuste fiscal (aumento da taxa de juros em 20 pontos percentuais) que impactou não só os trabalhadores de lá mas, como sempre, causou um impacto a nível global.
Não que esta seja a data que marca o início da era neoliberal, mas foi a partir dela foi que começamos a notar uma intensificação do que Foucault chamou de dispositivos de controle no ambiente corporativo. Estes podem ser entendidos como todas as formas burocráticas de controle e avaliação dos trabalhadores.
Deu-se início a era da concorrência intersubjetiva, ou seja, a era onde todo trabalhador está em constante concorrência consigo e com os demais.
A data “coincide” com a crise do petróleo de 1979 — também citada por Elias Jabour no seu livro “China o socialismo do século XXI” e que também causou uma série de desdobramentos no oriente.
Dardot & Laval trataram do mesmo assunto em seu livro “A nova razão do mundo”, onde fazem uma revisão histórica do nascimento do liberalismo clássico até os dias de hoje e os impactos no que diz respeito à saúde mental e suas patologias.
“Trabalho e vida se tornaram inseparáveis. O capital te acompanha até nos sonhos, o tempo para ser linear torna-se caótico, fragmentado em divisões puntiformes. Na medida em que a produção e a distribuição são reestruturadas, também é estruturados no sistema nervoso para funcionar com eficiência como um componente do modo de produção just in time (por demanda). É necessário desenvolver uma capacidade de responder eventos imprevisíveis, é preciso aprender a viver em condições de total instabilidade e precariedade para usar um neologismo horroroso períodos de trabalho alteram-se com dias de desemprego de repente você se vê preso em uma série de empregos de curto prazo impossibilitado de planejar o futuro”
“…a ontologia hoje dominante nega possibilidade de que enfermidades psicológicas tenham uma possível origem de natureza social obviamente a bioquímicalização dos distúrbios mentais é estritamente proporcional à sua despolitização considerá-los um problema químico e biológico individual é uma vantagem enorme para o capitalismo primeiramente isso reforça a característica do próprio sistema em direcionar seus impulsos a uma individualização exacerbada (se você não está bem é por conta das reações químicas do seu cérebro). Em segundo lugar cria um mercado enormemente lucrativo para multinacionais farmacêuticas desovarem seus produtos (podemos te curar com nossos inibidores seletivos de recaptação de serotonina) é óbvio que toda doença mental tem uma instanciação neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa. E é verdade que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina o que ainda resta a ser explicadas são as razões pelas quais indivíduos em específico apresentam tais níveis — o que requeria uma explicação política social. A tarefa de repolitizar a saúde mental é urgente se a esquerda deseja desafiar o realismo capitalista”
Capítulo 6 — Pin Points 📌
- Incoerência do pensamento neoliberal
- Pressão social por desempenho
- Referências a Deleuze & Guatarri e Kafka
- Auto exigência constante
- Aplicação dos conceitos no programa Big Brother
- Turvação da linha entre observação e ação
- Paralelo com o conceito do panóptico
O capítulo se revela desafiador e extenso, demandando uma leitura que pode se tornar um tanto cansativa. Fisher aborda a incoerência do pensamento neoliberal, que se apresenta como o oposto da burocracia stalinista, mas, por meio de suas múltiplas formas de controle e avaliação, revela-se como seu oposto direto. Ele destaca a constante pressão social em busca de desempenho e conquistas sempre crescentes, uma neurose internalizada por todos nós, mesmo que de forma imperceptível. O autor faz recorrentes referências a Deleuze & Guatarri e também a Kafka, cuja obra "O Processo" habilmente apresenta uma realidade que reflete nossa atualidade, onde nos encontramos constantemente em um estado de auto exigência.
Além disso, o capítulo explora a aplicação desses conceitos no programa Big Brother, onde a linha entre a performance dos participantes e suas emoções genuínas se torna turva, questionando se eles agem como observados por estarem sendo vigiados ou se estão expressando verdadeiramente suas emoções. Fisher estabelece um paralelo intrigante com a ideia do panóptico de Bentham, conforme interpretado por Foucault.
Capítulo 7
Fisher faz uma apresentação sobre a incapacidade que temos de nos apegar aquilo que é de fato real dentro do capitalismo.
Ele aponta para uma espécie de impacto mental que causa uma certa indiferença desapego e até mesmo uma não absorção na memória das coisas que vivemos.
É como se para conseguirmos manter um estado de equilíbrio mental fossemos inevitavelmente levados a nos comportar desta maneira. O exemplo que ele traz neste capítulo me fez lembrar de muitos líderes que já tive no mundo corporativo, ou seja, pessoas que eram capazes de repassar um discurso burocrático sem nenhum tipo de remorso e o apego (o famoso jogar o jogo). Felizmente após uma longa jornada de sofrimento fui capaz de perceber que não nasci para isso essa imposição de descolamento da realidade para atender as necessidades do mercado ou da empresa são limitações que não estou disposto a ceder.
“Ser realista já significou fazer as pazes com uma realidade experimentada como sólida e imóvel. No realismo capitalista, entretanto, implica que nos subordinemos a uma realidade infinitamente plástica, capaz de se reconfigurar a todo instante. Somos confrontados com o que Jameson chama, em seu ensaio, um “presente puramente fungível, no qual o espaço e as psiques possam igualmente ser processados e refeitos a vontade”.
Além disso mais para o final do capítulo Fisher fala um pouco sobre a incoerência da junção entre neoliberalismo e neoconservadorismo.
Se por um lado o primeiro possui uma sede de controle e de quantificação da performance dos indivíduos, o segundo apela para a moral e para um conflito com todos aqueles que não possuam a mesma fé cristã.
A contradição apontada por ficha é que o neoliberalismo se diz completamente contra a burocracia de estado e consequentemente hierárquica, já a igreja católica é o oposto disso — e ambos de maneira cínica se dizem a favor de um estado mínimo (no discurso).
Capítulo 8
Não há muito o que comentar porque esta parte resume de maneira magistral o que o autor trouxe neste capítulo final como um todo:
“O mais próximo que a maioria de nós chega de ter uma experiência direta com o caráter descentralizado do capitalismo é durante o atendimento em um call center. Como consumidores no capitalismo tardio, habitamos cada vez mais duas realidades distintas: aquela em que os serviços funcionam normalmente, sem encrencas, e outra realidade inteiramente diferente, a do labirinto kafkaniano enlouquecedor do telemarketing, um mundo sem memória, onde causa e efeito se conectam de maneiras misteriosas, insondáveis, no qual é um milagre que qualquer coisa aconteça e tende-se a perder as esperanças de retornar para o outro lado, onde as coisas parecem funcionar tranquilamente.
O que melhor exemplifica o fracasso do mundo neoliberal e suas relações públicas do que o call center? Mesmo assim, a universalidade das más experiências com o telemarketing não faz nada para desestabilizar a suposição corrente de que o capitalismo é realmente eficiente, como se os problemas com call centers não fossem as consequências sistêmicas de uma lógica do capital, na qual as organizações estão tão fixadas em obter lucros que sequer conseguem prestar o serviço.
A experiência do telemarketing destila a fenomenologia política do capitalismo tardio: o tédio e a frustração pontuados pelas relações públicas alegremente enlatadas; a repetição de detalhes aborrecedores para diferentes operadores (mal treinados e mal informados); a raiva acumulada que deve permanecer impotente porque não pode ter nenhum objeto legítimo, pois — como fica claro muito rápido para quem faz a ligação — não há ninguém que saiba o que fazer e ninguém que fará coisa alguma (mesmo que pudesse fazer).
A raiva não pode ser mais que uma válvula de escape, é agressão no vazio, dirigida a alguém que é igualmente uma vítima, mas com quem é difícil estabelecer empatia. Assim como a raiva não possui nenhum objeto próprio, não terá efeito nenhum. Esta experiência de um sistema que não responde, que é impessoal, sem centro, abstrato e fragmentário, é a experiência mais próxima de um encontro com a estupidez artificial do capital em si mesmo.”
Complementos
Outras Referencias
https://www.esquerda.net/artigo/o-racismo-dos-intelectuais-por-alain-badiou/40427