Luis Santos
12 min readJun 12, 2024
Pra todos verem: floresta densa com árvores altas e folhas espessas. A luz do sol penetra suavemente, raios de luz por entre as copas e troncos. No chão vemos galhos caídos. Há um grupo de camponeses. Eles estão vestidos com roupas simples e rústicas. A família é grande, composta por adultos e crianças. Eles estão ocupados coletando galhos e ramos do chão, integrando-se ao ambiente da floresta.

[Vai leno…] Os despossuídos — Bensaïd & Marx

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Introdução

O ano é 1843.

A Europa continua a ser dominada por monarquias absolutistas e por crises institucionais. As populações são assoladas pela fome e a ordem geral está à beira de mudanças.

Na Inglaterra, a revolução industrial em curso transforma a ordem mundial e cria uma nova classe proletária.

As organizações de trabalhadores são fundadas com base na utopia de que todos os homens são irmãos.

Dois jovens alemães vão desestabilizar essa noção, transformando o conceito de luta e o futuro do mundo.

Por que eu li esse livro?

O simples nome “Marx” traz consigo uma série de conceitos e pré conceitos.

Ele invoca os vieses mais profundos daqueles que um dia já pararam para questionar a realidade que nos cerca, seja a favor ou contra o status quo.

Ao invés de começar meus estudos deste senhor pelo conjunto de livros da sua obra clássica mais densa— O Capital — achei justo vasculhar como e quando ele começou a questionar tudo aquilo que o cercava.

Certo…. E o otro?

Daniel Bensaïd foi um filósofão francês brabo. Faleceu em 2010. Dedicou a vida em se debruçar sobre a história das derrotas socialistas para nos fornecer um novo roteiro.

Suas obras foram uma reformulação do marxismo. Elas visam reorientar os movimentos de esquerda em suas lutas.

A Editora Boitempo, fundada por Ivana Jinkings em 1995, publica obras de ciências humanas e teoria crítica.

Com uma perspectiva marxista, promove debates e edita trabalhos de importantes pensadores.

Os Despossuídos é um destes trabalhos.

Na primeira parte do livro, Bensaïd revisa o contexto histórico em que os artigos foram escritos e atualiza o debate incluindo a temática das privatizações, do fetichismo de mercado e da globalização.

Já na segunda parte, temos os primeiros artigos de Marx, traduzidos do original e que tratavam do direito sobre o uso da terra, uma questão fundamental às grandes experiências socialistas.

É imbuído da noção de que o primeiro roubo se dá com a primeira apropriação privada.

Essa primeira série de artigos levantava temas como o direito à propriedade, a liberdade de imprensa e as questões judiciais acerca da problemática gerada pela instauração de uma lógica capitalista onde antes o que regia era um direito consuetudinário, ou seja, um sistema jurídico baseado em costumes e tradições. Em vez de serem formalmente codificadas em textos legais, as normas do direito consuetudinário são transmitidas oralmente e praticadas consistentemente pela sociedade, tornando-se aceitas como obrigatórias. Este tipo de direito é comum em sociedades que não possuem uma estrutura jurídica formal ou escrita.

As anotações daqui pra baixo foram feitas durante a leitura, como forma de exercitar a memória a longo prazo e para que eu me sinta menos Dory… Contém spoilers, pesquisas paralelas (artigos acadêmicos, textos aleatórios e notas de gptismo complementar )

E sim… como sempre: nada muito raso, muito menos aprofundado.

A introdução acima foi xupinhada da introdução do filme O jovem Marx, que retrata a mesma época que os artigos foram publicados.

Parte 1 — Bensaïd

Capítulo 1 — O debate sobre o furto de madeira

No primeiro capítulo, Bensaïd aborda a legislação prussiana sobre o furto de madeira e apresenta uma série de problemas relacionados a essa questão.

Recém-formado na faculdade de direito, Marx utilizou sua posição como escritor e redator de um jornal para lançar uma crítica incisiva contra as injustiças da “dieta renana”, uma forma de imposto e taxas que impactavam diretamente a população mais pobre.

Em resumo quem fosse pego apanhando galhos, troncos ou quaisquer restos de madeira em propriedade privada, além de estar literalmente fudido teria de pagar sérias indenizações ao dito proprietário. O problema é que, até então, isso de “proprietário” não existia. Aí que a treta começa…

O direito a colheita era algo comum e não um crime.

Bensaïd explica o porquê da frase “A propriedade é um roubo” de Pierre-Joseph Proudhon, em seu trabalho “O que é a Propriedade?” (1840), ser central para o debate sobre a propriedade na época de Marx.

Para Proudhon, posse refere-se ao uso direto de um bem, enquanto a propriedade implica um direito exclusivo e absoluto, permitindo ao proprietário lucrar do trabalho alheio.

Proudhon argumenta que a propriedade privada resulta em exploração e injustiça, criando uma relação desigual onde os proprietários se beneficiam sem contribuir com trabalho.

Para ilustrar a injustiça da propriedade privada, Proudhon usa o exemplo da pesca e da agricultura. Ele questiona a lógica de que, se o mar não pode ser propriedade exclusiva do pescador, por que a terra deveria ser propriedade exclusiva do agricultor? Ambos os recursos são essenciais e deveriam ser acessíveis de forma equitativa.

Capitulo 2 — Guerra social das propriedades

Bensaïd nos mostra como se desenrola o debate entre Marx e Proudhon. Sua crítica é pelo fato de Proudhon não compreender a dinâmica do capitalismo e por propor soluções que não atacam as raízes do problema, que são as relações de propriedade burguesa e a exploração do trabalho. Para Marx, Proudhon não realiza uma análise crítica da economia política que abranja o conjunto das relações de propriedade, limitando-se a uma crítica moral e não materialista da sociedade.

Marx é frequentemente considerado superior, tendo construído uma base teórica mais sólida e uma perspectiva de mudança social mais coerente.

Alguns trechos deste debate trazido por Bensaïd:

“A alternativa do reino do capital imaginado por Proudhon aparece então como uma nova quimera da mesma maneira que as utopias que ele diz combater. Sua ‘teoria da mutualidade’, concebida como ‘um sistema de garantias’ que ‘faça da concorrencia um beneficio e do monopolio um penhor de segurança para todos’, e seu apelo filantropico a ‘uma troca since’ (atualmente diriamos ‘equitativa’) são, na melhor das hipoteses, uma tolice e, na pior, uma tentativa de fazer a roda da historia girar ao contrario. Assim, nao nos surpreende que, na pratica, essa teoria da mutualidade se traduza numa apologia da troca in natura e do credito para o consumo, apresentados como ‘sintese da propriedade e da comunidade’.

“Marx diz: ‘Troia ja não existe. Essa justa proporção entre a oferta e demanda deixou de existir há muito tempo. Antes da demanda acompanhava o consumo, passo a passo. Hoje a producao precede o consumo, a ofeta presiona a demanda. Segundo a quimera proudhoniana da troca equitativ, os custos de producao deveriam determinar em todas as circunstancias o valor do produto e valores iguais seriam sempre trocados por valores iguais.”

Capítulo 3 — O direito consuetudinário dos pobres mais comuns da humanidade

Bensaïd aborda a erosão dos direitos comuns no contexto do capitalismo, destacando como os direitos tradicionais, que historicamente garantiam o acesso dos mais pobres a recursos essenciais, têm sido progressivamente eliminados pelo avanço do capitalismo. Esse fenômeno pode ser analisado à luz do conceito de fetichismo de Marx e da doutrina liberal.

Historicamente, existiam práticas consuetudinárias em sociedades pré-capitalistas que permitiam aos pobres utilizar terras, florestas e outros recursos comunitários para sua subsistência. Esses direitos eram protegidos por costumes e tradições, assegurando uma forma de sustento mínima para os mais vulneráveis. Com a ascensão do capitalismo, esses direitos começaram a desaparecer. As terras e recursos que antes eram de uso comum passaram a ser privatizados, concentrando-se nas mãos de poucos proprietários, limitando o acesso dos pobres a esses bens e reforçando as desigualdades sociais e econômicas.

A doutrina liberal, com sua ênfase na propriedade individual, apresenta essa transformação como um avanço em nome da liberdade. No entanto, essa visão transforma tudo, inclusive os recursos e conhecimentos comuns, em mercadorias que podem ser compradas, vendidas e possuídas por indivíduos ou corporações. Essa mercantilização inclui o conhecimento, que deveria ser um bem comum.

O conceito de fetichismo da mercadoria de Karl Marx é essencial para entender essa transformação. O fetichismo da mercadoria descreve a situação em que as relações sociais e de produção são mascaradas pela aparência das relações entre coisas. As mercadorias parecem ter valor intrínseco independente das relações humanas que as produzem, criando uma ilusão em que os objetos de consumo e propriedade são vistos como naturais e inevitáveis. Isso obscurece as dinâmicas sociais e de poder subjacentes.

Um exemplo claro dessa transformação é a mudança nas políticas de patentes científicas desde o início do século 21, especialmente nas universidades estadunidenses. As universidades, que antes compartilhavam amplamente o conhecimento gerado por suas pesquisas, passaram a patentear suas descobertas, incentivadas por políticas que promovem a comercialização do conhecimento. A Lei Bayh-Dole de 1980 nos Estados Unidos permitiu que universidades, pequenas empresas e organizações sem fins lucrativos patenteassem invenções resultantes de pesquisas financiadas pelo governo federal. Isso transformou o conhecimento científico, antes considerado um bem comum, em propriedade privada comercializável.

Sob o prisma do fetichismo, o conhecimento científico, ao ser patenteado, deixa de ser visto como um produto da colaboração e da busca coletiva por avanços e passa a ser percebido como um bem individualizado e comercializável. A patente científica, portanto, adquire um valor que obscurece as relações sociais e colaborativas que a originaram, e seu acesso e uso são regulados por relações de mercado em vez de princípios de benefício público.

Por curiosidade, este capítulo fez com que eu buscasse algumas respostas oficiais para o conceito e as diferenças entre software livre, código aberto e como estes se relacionam com a ideia de bem comum (ver as referências no final).

Parte 2 — Marx

Artigos 1 e 2 (Outubro, 1842)

Marx analisa a lei que tratava do furto de madeira, criticando a forma como o legislativo prussiano aprovava a violência institucionalizada em favor dos proprietários de terras. Ele argumenta que essa legislação era claramente desenhada para proteger os interesses dos proprietários de terras, em detrimento das necessidades e direitos dos pobres que, muitas vezes, roubavam madeira por necessidade. Marx destaca a desproporção das penas impostas aos infratores, apontando que, além de devolver a madeira roubada, os infratores deveriam pagar uma indenização aos proprietários, o que exacerbava a desigualdade social e econômica.

No segundo artigo, Marx reforça a crítica à lógica da legislação que, ao invés de buscar justiça social, reforçava a opressão dos pobres. Ele expõe a incoerência do legislativo que, ao tentar coibir o furto de madeira com penas severas, na verdade legitimava a violência contra aqueles que já estavam em situação vulnerável. Marx argumenta que a lei não só protegia os interesses dos proprietários, mas também institucionalizava a injustiça ao forçar os infratores a pagar indenizações que eles não poderiam arcar, perpetuando um ciclo de pobreza e criminalização.

Artigo 3 (Outubro, 1842)

Marx critica a legislação que transformava a coleta de madeira morta em um crime, favorecendo os grandes proprietários florestais e prejudicando os mais pobres que dependiam dessa atividade para sobreviver. Esta análise revela as tensões entre as classes sociais e a utilização do aparato estatal para servir aos interesses dos ricos, às custas dos desfavorecidos. Neste artigo faz uma distinção entre os pequenos e grandes proprietários.

Enquanto os pequenos proprietários possuem menos terras, menos recursos financeiros, menos capacidade de contratar guardas florestais ou investir em segurança para proteger suas propriedades. Muitas vezes, os pequenos proprietários dependem diretamente da floresta para subsistência e renda, tornando-os mais vulneráveis às mudanças na legislação florestal.

Já os grandes proprietários florestais possuem vastas extensões de terra e recursos financeiros significativos. Têm a capacidade de contratar guardas florestais e investir em sistemas de segurança para proteger suas propriedades contra invasores e furtos. E exercem influência significativa sobre as decisões políticas e legislativas, frequentemente moldando as leis em benefício próprio.

O trecho do jovem Karl Marx ilustra como a legislação e o Estado se tornam ferramentas dos grandes proprietários florestais:

“Essa lógica, que transforma o empregado do proprietário florestal em autoridade do Estado, transforma a autoridade do Estado em empregada do proprietário florestal. A estruturação do Estado, a determinação de cada uma das autoridades administrativas, tudo precisa se desconjuntar para que seja rebaixada a condição de meio do proprietário florestal e para que o interesse deste apareça como a alma determinante de todo o mecanismo. Todos os órgãos do Estado se convertem em orelhas, olhos, braços e pernas, que o interesse do proprietário florestal usa para escutar, espiar, estimar, proteger, agarrar e correr.”

“O Estado deve ver

naquele que cometeu um delito relativo à exploração da madeira

mais do que alguém que violou a lei, mais do que um

inimigo. Todos os seus cidadãos não estão ligados a ele por

mil nervos vitais? Ele pode cortar todos esses nervos porque aquele

cidadão cortou autocraticamente um nervo? O Estado, portanto, verá

também alguém que violou a lei da como uma pessoa,

como um membro vivo, no qual circula o seu sangue, um soldado

que defende a pátria, uma testemunha cuja voz deve ter validade

diante do tribunal, um membro da comunidade que deve poder

exercer funções públicas, um chefe de família cuja existência é

santificada, acima de tudo um cidadão do Estado, e o Estado não

excluirá levianamente um dos seus membros de todas essas

determinações, pois o Estado amputa a si mesmo toda vez que

transforma um cidadão em criminoso”

A obra expõe a desigualdade inerente à legislação que favorece os ricos e poderosos, usando o aparato estatal para garantir seus interesses. Os pequenos proprietários florestais e a população pobre sofrem sob um sistema que reconfigura o Estado para servir aos grandes proprietários, evidenciando a luta de classes e a injustiça social. A capacidade dos grandes proprietários de pagar por segurança vitalícia, contrastando com a vulnerabilidade dos pequenos proprietários, exemplifica a profunda desigualdade que Marx critica em sua análise.

“O ladrão de madeira subtraiu madeira do proprietário florestal, mas o proprietário usou o ladrão de madeira para subtrair o próprio estado.”

Artigos 4 e 5 (Novembro, 1842)

Últimos do livro.

Trechos e resumo pra fechar com paulada e molotov 🔥:

“Em que os homens fundam sua demanda à servidão de quem viola a lei da madeira, no dinheiro das multas? Mostramos que os senhores não têm nenhum direito ao dinheiro das multas. Vamos abstrair isso. Qual é o princípio básico dos senhores? Que o interesse do proprietário florestal esteja assegurado, mesmo que isso acabe com o mundo do direito e da liberdade.”

“Toda a nossa exposição mostrou como a dieta renana rebaixa o poder executivo, as autoridades administrativas, a existência do acusado, a ideia de Estado, o próprio crime, e apenas a condição de meios materiais do interesse privado. É coerente com isso que também a sentença judicial seja tratada como mero meio e a força de lei da sentença como rodeio supérfluo.”

“A madeira continua sendo madeira tanto na Sibéria quanto na França; o proprietário florestal continua sendo proprietário florestal tanto em Kamchatka quanto na província do Reno. Portanto, quando a madeira e os possuidores da madeira enquanto tais fazem leis, essas leis em nada vão se diferenciar das demais, a não ser pelo ponto geográfico e pela língua em que foram promulgadas. Esse materialismo condenado, esse pecado contra o Espírito Santo dos povos e da humanidade, é consequência imediata da doutrina que o Jornal do Estado da Prússia prega ao legislador, a saber, no caso da lei referente à madeira, pensar somente em madeira e floresta e não resolver o problema material concreto politicamente, isto é, sem relação com toda a razão do Estado e a moralidade pública.”

Em conjunto, esses trechos expõem a crítica de Marx ao sistema jurídico e econômico que prioriza interesses materiais privados sobre os direitos, liberdades e moralidade pública, e como isso se manifesta na legislação e administração da justiça.

Conclusão

Apesar de ser uma obra pequena, de fácil leitura e absorção, Os Despossuídos foi uma ótima escolha para iniciar os estudos marxistas, visto que a partir dele todos os grandes conceitos ganham uma conexão especial com os primeiros incômodos de Marx, mesmo antes de se juntar a Engels.

Os artigos de Marx, com suas críticas e reflexões sobre a economia política e a sociedade capitalista, fornecem a base teórica para uma compreensão mais profunda das lutas de classes e das contradições do capitalismo. A leitura e análise dessas obras são essenciais para qualquer estudante ou pesquisador interessado em entender as raízes e as dinâmicas das desigualdades econômicas e sociais contemporâneas. O livro de Daniel Bensaïd, ao revisitar e contextualizar os escritos de Marx, oferece uma perspectiva renovada e crítica, incentivando a reflexão sobre como esses conceitos se aplicam às realidades atuais.

Concluindo, tanto o trabalho original de Marx quanto as interpretações contemporâneas, como as de Bensaïd, são fundamentais para a formação de uma análise crítica e informada sobre o capitalismo e suas consequências. O estudo dessas obras não apenas enriquece o conhecimento teórico, mas também instiga a ação prática e consciente na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. Assim, Os Despossuídos se destaca como uma porta de entrada eficaz e estimulante para o vasto e complexo universo do pensamento marxista.

Luis Santos

Pai do Muri, da Cacá e da Olivinha, dev nas horas vagas e entusiasta do ''desacelêro".