[Vai leno…] Memórias do subsolo — Dostoiévski
Introdução
“Mucho de lo que hoy te digo nació en aquel tiempo de soledad en la cárcel
No sería quién soy… ¡No! Seria más futil, más frívolo, más superficial
Más exitista, más de corto plazo. Más triunfador. Probablemente… Más. Más embebido del éxito Más con pose de estatua
Mas todo eso, que no soy hoy, tal vez sería si no hubiera vivido esos 10 y pico de años de profunda soledad.
Por eso es curioso… Lo que te voy a decir no se puede tomar conta con espíritu del almacenero: A veces lo malo es bueno y a veces al revés lo bueno es malo.”
Pepe Mujica — Documentario El Pepe
Por que eu li esse livro?
Dostoiévski.
Deveria ser o suficiente pra explicar.
Mas para quem nunca leu nada do louco russo, não quero gerar nenhuma barreira pelo viés, me entenda: o moço era brabo nas escrita. Brabo mesmo.
Minha primeira obra dele foi Crime e Castigo, há alguns anos. Dei risada e quis chorar tentando entender a dualidade extrema do protagonista: Raskólnikov.
Depois veio O idiota, O sonho de um homem ridículo e por fim Memórias do Subsolo.
É bem difícil não estar enviesado por aqui… é o tipo de autor que faz a gente sair da leitura meio diferente, reflexivo e refém de pensamentos da própria natureza humana.
Ele é capaz de nos colocar na cena, as vezes como mero espectador mas muitas vezes na mente mais profunda e paranoica de seus personagens.
Li, leio e ainda vou ler outras obras deste cidadão. Com muito gosto.
As anotações foram feitas durante a leitura, como forma de exercitar a memória a longo prazo e para que eu me sinta menos Dory… Contém spoilers, pesquisas paralelas (artigos acadêmicos, textos aleatórios e um pouco de gptismo complementar — alguns resumos agora saem de áudios gravados como anotações no meu Todoist/Skoob, eu gravo comentários tipo speech to text, mando pra uma revisão e organização, reviso e guardo — isso melhora muito minha absorção e retenção).
Mas sim, como sempre: nada muito raso, muito menos aprofundado.
O resumo — Parte 1
Capítulos 1 e 2
Nas primeiras páginas o narrador inicia sua auto apresentação.
De cara, mostra alguns conflitos de pensamento e uma visão de mundo um pouco obscura e de difícil entendimento.
Ao que parece é crítico a sociedade e principalmente ao lugar em que vive.
Capítulo 3
Traz um comparativo das diferenças entre o homem pensante e o homem prático, de ação.
Compara o primeiro a um camundongo, que sabe seu verdadeiro tamanho e insignificância, mas que acaba por sofrer em pensamentos, despertando o ódio, a fúria e o direito a vingança em suas ações.
Já o segundo, muito convicto de suas crenças é como um touro diante as leis da natureza, que a tudo reclama e que pouco quer transformar.
A defesa pela ciência neste capítulo me fez questionar a influência do pensamento positivista no autor.
Dúvida: há algo de positivista no pensamento de Dostoiévski? De fato existe ou foi apenas uma exceção… como uma narrativa irônica?
Vou deixar um complemento histórico / biográfico para as questões acima nas referências.
A resposta veio rápido...
Dostoiévski não era um positivista.
Enquanto o positivismo, enfatiza a observação empírica, a ciência e a busca por leis sociais, Dostoiévski estava mais interessado nas questões da alma humana, do sofrimento, da liberdade individual. Suas obras frequentemente mergulham em dilemas éticos e existenciais, explorando a complexidade da natureza humana e os aspectos mais sombrios da psique humana.
A falsa defesa positivista presente na obra não passa de pura ironia mesmo.
Capítulo 4
De forma ácida e sarcástica ele descreve como a reação a dor é produto da nossa consciência, usando os gemidos de alguém que esta com dor de dente como exemplo ele ressalta como o ser humano muitas vezes é incoerente em suas ações, sendo capaz de encontrar prazer até mesmo através do sofrimento.
Capítulos 5 e 6
Engraçado e trágico o jeito que o autor retrata a forma como o homem do subsolo pensa sobre suas ações:
“… e quantas vezes me aconteceu de, bem, de exemplo, me sentir ofendido de propósito, sem motivo nenhum, e no fundo, eu até sabia que não havia motivo para ficar ofendido, mas bancava o ofendido, e tanto eu me esforçava que, falando sério, acabava me sentindo ofendido de verdade”.
Parece como numa sessão de terapia: relatamos nossas histórias, expressamos nossos sentimentos e ao nos ouvir, no fundo, deixamos evidenciado o que de fato aconteceu.
“Ah quem me dera eu não fizesse nada por pura preguiça… pelo menos haveria em mim uma qualidade mais ou menos positiva”
[Breve pausa para entender o que foi o utilitarismo, que será alvo de críticas nos capítulos seguintes]
O utilitarismo é uma filosofia que defende a maximização da felicidade como objetivo moral, buscando o maior bem para o maior número de pessoas.
Com seu enfoque na busca da felicidade e na minimização do sofrimento, parece ingênuo e simplista diante da visão sombria da condição humana retratada por Dostoiévski.
Capítulos 7 e 8
Dois dos melhores capítulos do livro.
Entendendo previamente o destino e contexto histórico dos ataques que o autor direciona ao pensamento utilitarista e positivista da época chega a ser engraçado a forma como defende que tanto o lucro quanto o desejo são imprevisíveis pela própria natureza humana.
“A vida, mesmo que uma porcaria, é a vida. Não o resultado de uma raiz quadrada”
É uma crítica direta a ideia de que seguir cegamente a ciência será suficiente para tornar a humanidade melhor. Trazer a tona explicações sobre as leis da natureza, sobre o universo ou sobre quaisquer outros aspectos da vida não serão (e não foram mesmo) capazes de tirar do ser humano seu desejo de auto afirmação, de legitimar suas vontades, independente se para o bem ou para o mal. Toda a história da criação da primeira bomba atômica pode ser um complemento bem interessante sobre essa crítica do autor (filme Openhaimer e o documentário Einstein e a bomba são boas sugestões).
“…no fim, o ser humano quer única e exclusivamente garantir a sua capacidade de ser um humano e não uma tecla de piano.”
Capítulos 9, 10 e 11
Encerramento da primeira parte do livro.
Frases e pensamentos que marcam:
“A melhor forma de definir o ser humano é um ser bípede e ingrato.”
“Mesmo no caso de o ser humano ser convencido pela ciência de que há de fato um caminho sensato a seguir, ele irá, como que por capricho, fazer tudo ao contrário”
“Dois e dois são quatro até uma certa parte…” (isso me lembrou 1984 — Orwell, polícia das idéias)
O resumo — Parte 2
Capítulos 1 e 2
Dostoievski, através do homem do subsolo, muda o tom e narra ainda mais clara as concepções e confusões do personagem. A forma como se vê, ao mesmo tempo diferente, único, mais belo e inteligente que os demais, conflita com sua real insignificância.
Todo o rolê que é capaz de fazer apenas para “dar o troco” no militar que esbarrou em seu ombro — ou a forma como descreve já no segundo capítulo a visão de sí indo da lama ao heroísmo me fizeram lembrar não só de Raskolnikov (Crime e Castigo) mas também de Antoine Roquentin (A Náusea — Jean-Paul Sartre).
Capítulos 3, 4 e 5
Até aqui a parte mais prazerosa e engraçada de ler, sem dúvida.
O personagem conta sobre suas amizades e seu círculo de convívio na época da escola após reencontrar algumas figuras na casa de Símonov.
Ao se oferecer para o jantar de despedida fica ainda mais claro os confrontos internos do personagem, o orgulho que tenta transmitir mesmo para aqueles que sente repulsa.
Toda a dinâmica do jantar, as trocas entre o grupo, os pensamentos internos do personagem e a confusão que causa são reflexos diretos de uma mente atormentada, que se deixa sugar pelo desejo do Outro (Lacan), que finge ser algo em seu imaginário (inteligente) e que esta em constante opressão.
Capítulos 6 ao fim
Trágico, mas não surpreende todo o enlace entre o protagonista e Liza — uma prostituta que acaba por roubar a cena e os pensamentos do mesmo na parte final do livro.
Assim como a dinâmica com Apollon, é uma relação que exalta a tentativa constante de se sentir superior, de enaltecer sua “inteligência” e de sentir a fantasia de poder. Na prática, a dualidade apresentada na obra é de um realismo que chega a assustar de tão sincero, rústico e, de certa forma, atual.
O homem do subsolo é um personagem que reflete seu tempo, mas que apresenta a natureza humana e as neuras de uma forma direta, breve e potente.
Conclusão
As angústias do homem do subsolo decorrem não só de uma dolorosa compreensão da alma humana, mas de uma condição existencial particular, ligada à formação dessa personagem, que reflete o desenvolvimento de sua sociedade.
Segundo o filósofo Jean-Jacques Rousseau, “o ser humano nasce bom, a sociedade o corrompe” — pensamento que pariu o mito do bom selvagem, ou seja, todo homem é bom e puro por natureza. Ja Karl Marx, numa linha complementar, disse: “Os homens fazem sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sobre as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” — ou seja, somos resultado direto daquilo que nos antecedeu.
Membro de uma minoria social na Rússia do século XIX, preso a um lugar de pobreza o homem do subsolo está cercado por uma série de particularidades históricas que moldaram sua sensibilidade.
Sensibilidade essa que faz dele uma versão russa, dostoievskiana, do drama do homem moderno, enquanto expressão de uma crise que decorre de um processo histórico de desarticulação social e desenraizamento moral e espiritual.
Leituras complementares
- O utilitarismo e a crítica de Dostoievski
- Memórias do subsolo: problemas interpretativos
- https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/50277/29438
- https://revistacult.uol.com.br/home/o-senhor-dostoievski/