Meu novo olhar sobre o relacionamento parental | Brisas sobre criação e valores

Luis Santos
12 min readJun 10, 2022

“Botar no mundo é fácil, criar é que é difícil” — Dona Hermínia

Quantas vezes você já ouviu essa frase? De um familiar mais velho, curiando conversa alheia no metrô, na feira de domingo ou em qualquer outro lugar. É um fato quase inquestionável, né?

Cá entre nós, a criação de um projetinho rabiscado de ser humano é talvez um dos desafios mais difíceis e prazerosos da nossa vida. Uma experiência que começa antes daquele atraso na menstruação, gravidez, enjoos, passa pelo primeiro chorinho na sala de cirurgia, chegam as (várias) madrugadas agitadas e, alguns segundos depois vai pro “família, hj eu quero comer pizza”. E esse rolê segue pra vida toda…

Se for seu estilo, você pode até buscar inspiração ou conforto sobre criação com seus próprios pais, amigos ou lendo sobre o assunto. Mas a real é que não existe manual ou receita pronta. É tudo por nossa conta e risco. Se houvesse algo para garantir um bom relacionamento entre pais e filhos certamente o mundo seria um lugar melhor.

Muito melhor mesmo. Sem alienação ou ingenuidade social. Infelizmente ter tempo, disposição e a saúde mental necessária para refletir sobre temas como este são privilégios que precisam ser reconhecidos. Vivemos em uma sociedade patologicamente desigual, confusa e caótica, que obriga muitas pessoas a viverem no modo automático.

Quí… tem essa não! Aqui é raiz. Pai e mãe é sagrado! Tem que respeitar e já era.” — bom, se esse tipo de pensamento não gerar bloqueios na relação e não transformar falhas humanas em verdadeiros sacrilégios, amém. Mas vamos voltar ao contexto…

Há alguns meses me tornei pai pela segunda vez. Nosso primeiro filho está prestes a completar 4 anos e no fim do ano passado resolvemos dar uma irmãzinha pra ele de Natal.

Todos os dias, junto com a contemplação de vê-los brincando ou dormindo, relembro também de uma frase do filósofo, educador e palestrante Mário Sérgio Cortella:

“O mundo que nós vamos deixar para os nossos filhos depende muito dos filhos que nós vamos deixar para o mundo…” (clique para assistir)

Não é (só) uma auto cobrança paternal, é um fato. E colocando dessa forma fica muito mais didático lembrar qual o nosso papel na vida dos pequenos.

A ideia aqui é justamente falar um pouco de algumas experiências e reflexões que tive ao longo desses meus primeiros anos como pai.

Resolvi colocar elas pra fora assistindo 3 curta animações da Pixar que, além de visualmente lindas e ganhadoras de prêmios como o Oscar, falam um pouco sobre família e criação: Piper, La Luna e Bao. Cada uma tem em média 5 min de duração, então se ainda não assistiu (ou se quiser ver de novo) permita-se fazer essa pausa.

Todas estão disponíveis no YouTube (caso queira assistir na melhor qualidade, peça aquela conta da Disney+ emprestada para amigos caridosos). Vou deixar os links abaixo.

Piper (2016)| Sobre estímulo, vulnerabilidade e confiança (clique aqui para assistir)

Piper tem muito a ver com a primeira infância, fase atual dos nossos filhos.

São tantas experiências novas nos primeiros anos da vida de uma criança que fica difícil tentar sintetizar tudo o que a gente aprende em família.

Na animação vemos o quão importante é a presença de uma figura que cuida, que incentiva e que inspira por sua autoconfiança. A forma meio durona da mamãe passarinho na animação, seu jeitinho meio “vai fí, se vira!”, me fez lembrar que tentei, por um bom tempo, ser como ela. Penei para desconstruir a visão de que o colo pode mimar demais a criança. Tive que entender que a presença de qualidade é um dos pilares da segurança emocional dos pequenos. Cada um vem com a sua dose de necessidades afetivas e sim, é nosso dever estar lá para atendê-las.

Assistindo a saga do passarinho lembrei de como é difícil também diminuir a quantidade dos “nãos” e incluir a criança nas atividades. É preciso aceitar que haverá um sofrimento inicial para que eles passem pelo processo de aprendizagem e ganhem autonomia. Uma farra com água na pia ou no quintal, pintar o corpo todo com canetinha ou tinta guache, tomar banho, comer ou ir ao banheiro sozinhos, tudo isso nas primeiras vezes desgasta bastante. Até coisas mais simples, como aceitar que um bolo em família pode (e deve) transformar a cozinha toda num reino de farinha me fizeram entender que bagunça em família é sinônimo de lugar seguro, de troca e de carinho.

Há em Piper um convite sutil para pensarmos o quanto daremos de espaço para nossos filhos serem o que quiserem ser, de aceitarmos sua essência, seu vir a ser. Nesse sentido tive que romper com meus próprios bloqueios infantis e me permitir incentivar meu filho a desenhar, sem julgamentos, já que nunca valorizei muito meus próprios rabiscos e dificilmente aceito os elogios quando chegam. É muito fácil e cômodo repassar todos os nossos medos e inseguranças para nossos filhos. É preciso ter bom senso e equilíbrio para permitir que eles façam suas próprias escolhas e possam experimentar o mundo a sua maneira. Também é importante não plantar expectativas e esperar que eles realizem sonhos que um dia foram seus.

Em um dos últimos capítulos de seu livro “A coragem de ser imperfeito”, a pesquisadora, palestrante e escritora norte-americana Brené Brown propõe um manifesto pela criação de filhos plenos. Separei um trecho abaixo:

Acima de tudo, quero que você saiba que é amado e que tem capacidade de amar;. Você descobrirá isso por meio das minhas palavras e atitudes, as lições sobre o amor estão na maneira como eu o trato e como eu trato a mim mesmo. Quero que você se relacione com o mundo a partir de um sentimento de dignidade e de autovalorização. Você descobrirá que é digno de amor, aceitação e alegria todas as vezes que me vir praticando o amor próprio e acolhendo minhas próprias imperfeições. Nós praticaremos a coragem em nossa família ao nos mostrarmos, ao deixarmos que nos vejam e ao valorizarmos a vulnerabilidade. Compartilharemos nossas histórias de fracasso e de vitória. Em nosso lar sempre haverá espaço para ambas.

Ligando e fechando os pontos: penso que todo contato que temos com o cuidar e educar é pura arte. Que te leva inevitavelmente ao auto conhecimento, ao desprendimento e ao querer se doar por inteiro. Admirar o processo, ver como eles vão tomando forma, nos mostrando novas formas de ver o mundo. Tudo isso sempre será a nossa maior recompensa enquanto papais e mamães.

La Luna (2011) | Sobre identidade e quebra de ciclos (clique aqui para assistir)

La Luna nos apresenta um dia comum de três gerações interagindo (avô, pai e neto). Muitos de nós convivemos diariamente com nossos familiares, seus costumes, padrões, jeitinhos e esquisitices. Dependendo da nossa idade e/ou momento da vida, é muito fácil ligarmos o modo azedume / intolerante e entrar em conflito pelos motivos mais banais. As diferenças retratadas na animação de forma caricata são boas para refletirmos sobre o tema. Não importa se elas são pequenas ou grandes, nós normalmente não as aceitamos e ponto final, vida que segue...

Mas e quando notamos que, na verdade, somos nós que estamos replicando alguns comportamentos dos mais velhos? Quando você se vê num déjà vu em papéis invertidos e pensa “pera aí, eu já ouvi isso antes… mas não era eu”. Quando não é a sua mãe, seu pai, sua avó ou sua tia que estão ali de frente para uma situação expondo toda sua visão de mundo, replicando ações ou trejeitos? É você. Única e exclusivamente você (se bobear ainda vai ouvir a Elis cantando “como os nossos pais” de fundo)

A quebra dos chamados padrões transgeracionais (transmitidos de uma geração a outra) exige atenção e coragem. Muita coragem. Refletir sobre como nossas ações podem ter origem no passado é algo difícil, desafiador e que não começa numa tarde de domingo ensolarado. É no caos. Primeiro você percebe o padrão uma, duas vezes. Depois vem a negação, o confronto interno (um “ah não, num pode cê” infinito). O processo envolve passar por todos os estágios até a aceitação. Só daí pode haver uma mudança significativa e real.

No meu caso foram alguns momentos de desinteresse, afastamento e irritação com meus filhos que me convidaram a buscar um pouco mais de conhecimento neste campo. Aquela birra na mesa do café da manhã, a bagunça que não acaba as 2, 3, 4h da manhã ou aquele banho que era pra demorar só alguns minutos são exemplos bobos de situações que me convidaram a repensar minhas atitudes. Não é só um “calma, é apenas uma criança” que resolve a equação. Muitas vezes é preciso descer um pouco mais e entender a origem daquele sentimento.

A autora e psicoterapeuta britânica Philippa Perry, em “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” nos convida a refletir exatamente sobre este assunto. Segue um trecho de uma entrevista dela:

“Quando nossas crianças estão vulneráveis, talvez incapazes, elas podem nos lembrar de como nós mesmos éramos vulneráveis e à mercê de nossos pais quando éramos pequenos. Isso pode ter sido tão sofrido ou assustador que nós não queremos sentir empatia para com nossas crianças porque teremos que sentir todos aqueles sentimentos novamente. Ao invés disso, ficamos frustrados ou bravos.”

e essa reação de ficar bravo, explodir ou se afastar, muitas vezes, foi exatamente a mesma reação que seus pais tiveram com você. Eis que você repete o maldito padrão.

“Ah mas nós também somos de carne e osso né, por que não iríamos reagir da mesma forma?” — isso é uma escolha individual. Romper um ciclo não é algo obrigatório, vai da sua análise ou do quanto você pode ter se machucado com este comportamento no passado. Vale lembrar que nem todo padrão é nocivo.

Outras animações recentes da Pixar, como Viva — A vida é uma festa, Red — Crescer é uma fera e Encanto, também abordam o tema da família e mostram a importância de entendermos as origens das nossas ações e sentimentos para formação da nossa identidade e para conquistar uma experiência afetiva de qualidade.

Me parece que em La Luna, o personagem mirim é capaz de observar, replicar e até mesmo se inspirar nas ações de seus cuidadores, mas quase que num passe de mágica, entende que não há motivos para agir exatamente como eles, há um impulso natural e inocente para a ação criativa, algo que, sabemos, nem sempre é tão fácil assim.

Bao (2018)| Sobre empatia, rupturas e reparos (clique aqui para assistir)

Bao é um curta que retrata um momento marcante para qualquer família: o momento da partida dos filhos, do início de um novo ciclo para todos.

Como na animação, pode ser por conta de um novo relacionamento, um casamento ou simplesmente quando o filho resolve morar sozinho. Há inevitavelmente uma quebra, uma ruptura emocional; e mesmo que todos entendam e respeitem a decisão de quem vai partir, não dá para camuflar eternamente os sentimentos que serão gerados a partir dali.

Em poucas cenas vemos a importância (e a dificuldade) de mantermos nossos laços durante diferentes fases da vida. De ambos os lados, quando há uma ruptura, buscar uma reconexão e abrir mão de possíveis mágoas é um desafio intenso e contínuo.

Ao ver a mãe da animação sofrer do que chamam de síndrome do ninho vazio, é inevitável não trazer novamente um trecho do livro de Philippa Perry:

Significa muito para os filhos adultos quando os pais se interessam de maneira não intrusiva por sua vida. Você sempre foi um espelho para seus filhos. Como eles se veem e se sentem em relação a si mesmos vai sempre, em algum grau, ser influenciado pela maneira como você responde a eles, como fica feliz por eles, como se dirige a eles e como se relaciona com eles (e com a sua família). Isso não acaba de repente quando eles chegam a idade adulta, se casam ou tem seus próprios filhos — continua. Quando uma mãe de 100 anos sorri de alegria e orgulho pelo filho que já tem lá seus 75 isso não é irrelevante, faz diferença. Nosso orgulho por nossos filhos adultos é muito significativo para eles, muitas vezes mais que a admiração e o elogio dos outros.

Para quem cuida é extremamente difícil, desde o comecinho, olhar o mundo com os olhos da criança. O que pode parecer óbvio, bobo ou ingênuo para os adultos, para as crianças pode ser facilmente visto como uma catástrofe. Exemplos vividos por aqui: “não vamos mais jogar vídeo game hoje”, “você não pode brincar com água porque tá frio lá fora” ou “temos que ir no médico mais tarde” são coisas que parecem tranquilas de serem compreendidas, mas que exigem conexão, preparo e muita paciência.

As vezes é preciso literalmente entrar na mente da criança. Sentar no chão, ficar na mesma altura e dizer: “Olha, eu também não gostaria de parar de brincar agora, é nossa hora favorita né? Mas óh, se a gente não comer nada agora, não vamos conseguir brincar mais depois. O que você acha de irmos juntos e voltar daqui a pouco, bem pouco? Vamos levar o Woody pra comer com a gente?

Parece lindo e fofo mas normalmente é com uma pitada de dinamite — falta voar prato e Woody pra tudo que é lado…

Empatia é diferente de simpatia. Não é sobre comparar algo que já aconteceu com você no passado com o que esta acontecendo com alguém no presente. É sobre achar algo em você que se conecta com a emoção ou sentimento de outra pessoa.” — Brené Brown.

A primeira fase de um bebê fará você entender que é preciso se conectar com o que esta acontecendo mesmo quando não existem palavras. É preciso estar preparado para os picos de crescimento, os dentes, o sono. Tudo isso mexe muito com o humor das crianças e, até a fase adulta, sempre haverão coisas a se descobrir, que vão exigir esse mesmo tipo de conexão.

Voltando ao Bao, não é só quando o filho retorna que podemos ver essa busca por conexão, mas também (ou principalmente) na reunião da família no final, a forma como estão interagindo juntos, o contato, os aplausos. Essa cena pequena mostra que não é um evento isolado que possibilita mudança, é o que será feito dali pra frente, sempre que possível.

O reparo de uma ruptura exige reconhecer onde houve um erro, exige pedir desculpa e desejo real de conexão, com todos, inclusive com os novos integrantes. Não dá pra negar que muitas pessoas fogem dessa reflexão e preferem sofrer a encarar sua própria vulnerabilidade.

Conclusão

Esse texto não nasceu do nada. Ele nasceu do processo de aprendizado, das trocas, das observações, dos sentimentos e da maturidade que foram chegando com o tempo.

Esse texto nasceu, principalmente, do sentimento de despreparo e atraso que sempre senti em relação a minha esposa, mãe da nossa duplinha terrorista e minha maior mentora. Ela sempre se mostrou vários passos a frente e sempre me fez questionar minhas atitudes, me confrontou a evoluir, ser mais crítico, sensível, responsável e, principalmente, um pouco menos lerdo quanto ao trato e proximidade com nossos filhos.

Como disse no começo, é tudo por nossa conta e risco. Não quero parecer hipócrita escrevendo sobre algo que ainda estou aprendendo. Ser humano é admitir que somos suscetíveis a erros, mas que podemos aprender e evoluir com eles todos os dias.

Ainda estou em busca de muito equilíbrio, ainda há muita culpa. Seja pelas distrações diárias, pelo tempo que ficamos no celular ou que estamos jogando Fortnite juntos, até quando rola um stress por alguém aqui querer um Mc’Donalds. Inclusive o tempo dedicado com a criação deste artigo também geraram certas doses de “ah, quer saber, não é melhor deletar tudo isso e ir lá aproveitar eles mais um pouquinho?

O que importa mesmo é que não medirei esforços para mudar toda e quaisquer concepções de mundo que eu possa ter para o bem-estar e convívio com os nossos filhotinhos, nossos presentinhos divinos.

Que legal seria daqui uns anos ouvir deles após essa leitura:

Vish, ó as brisa que o véio tinha…”.

Até lá, me conta aí, o que você achou?

Inspirações e Referências

Livros citados no texto:
- O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido — Philippa Perry
- A coragem de ser imperfeito — Brené Brown

Outros livros não citados mas que também falam sobre família, comportamento e sociedade:
- Cartas para minha avó — Djamila Ribeiro
- O olho mais azul — Toni Morrison
- Vivendo a comunicação não violenta — Marshall Rosenberg

Algumas outras dicas para expandir a visão sobre sentimentos, criação e sociedade:

- Curta Brilhante (YouTube)
- Podcast Tricô de Pais (Spotify)
- Podcast Amor em Pauta (Spotify)
- Tempo Junto (Instagram)
- Série Attypical (Netflix)
- Filme CODA | No ritmo do coração (Amazon Prime Vídeo)
- Quem pode ter família? (YouTube) — Canal Tempero Drag / Rita Von Hunt

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Luis Santos

Pai do Muri, da Cacá e da Olivinha, dev nas horas vagas e entusiasta do ''desacelêro".